Graças a deus eu não tive pai!
É interessante observar que o título desse texto choca mais as pessoas do que as estatísticas de abandono, violência de gênero e abuso que mães e filhos sofrem tendo como algoz aquele homem que uma vez disse amar aquela mulher e sonhava em ser pai.
Somos, desde sempre, bombardeados com narrativas que colocam o homem como o eixo da família, o cabeça, o provedor e protetor, discurso embasado na religião católica que criou a imagem do homem como um herói salvador para ser adorado, obedecido e temido.
O conceito de família que é pregado por certas religiões, não condiz com a realidade. E tem muita gente refém desse conceito, desse formato conservador, quando na verdade, família é onde existe amor. Porque nosso sangue até mosquito tem!
Nas produções audiovisuais, as mães na maioria das vezes são apenas coadjuvantes quando não, só figurantes. A busca dos filhos para conhecer suas origens gira sempre em torno do progenitor. Isso é sintoma de uma sociedade patriarcal doentia que invisibiliza as mulheres e seu trabalho de cuidados.
Já se questionou da tradição matrimonial da mulher que ao se casar adota o sobrenome do marido, mas ele não adota o dela? Em muitos filmes, vemos Sr e Sra (sobrenome do marido), e os filhos consecutivamente só têm o sobrenome do pai. Vou deixar aqui uma dica: Pesquise na Wikipedia as celebridades que vocês admiram e vejam como na esmagadora maioria de vezes elas foram registradas somente com o sobrenome do pai. Isso não é um costume do país, muito menos cultural, é patriarcal. Já repararam também como o nome de homens são eternizados como Junior, Filho, Neto, II, III…É a sociedade forjada por homens para girar em torno de homens.
Eu nasci e cresci numa família negra composta por 80% de mulheres. Destas, a maioria são mães solo. Casadas ou não.
Algumas que preferem permanecer em relacionamentos ruins, vezes até violentos, do que encarar a verdade de que sua jornada na maternidade já é solo. Mesmo tendo alguém ao lado que despreza suas necessidades e negligencia suas responsabilidades. Para muitas mulheres, muito infelizmente, é preferível ter qualquer pessoa, lhes tratando de qualquer jeito, do que ficar sozinha. pois poderia ser vista como uma “solteirona, desquitada, a que ficou para titia ou fracassada que não segura um homem”.
Há uma profunda falta de amor-próprio e autoestima que ninguém ensina a mulheres, sobretudo, a mulheres negras, estas que são o topo de todos os índices de violências de gênero por serem NEGRAS. Muitas vivem em ciclos de relacionamentos abusivos durante toda a vida, se contentando com o “menos pior” apenas para vivenciar alguma forma de afeto.
Não há paternidade sem maternidade e vice-versa, já dizia bell hooks.
Eu sinto somente pela minha mãe, preta retinta, sem o ensino primário, diarista, mãe solo de dois, morando num morro sem água enquanto construía a nossa casa. Realidade muito parecida com a de Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo. Para ela, talvez, um companheiro aliviasse a carga, ter com quem contar poderia ter sido um enorme conforto, um ombro pra chorar...ou não, pois os poucos homens que se aproximavam dela eram bastante problemáticos, pareciam buscar alguém para se encostar, o que é comum na maneira que mulheres negras são vistas, a forte que não precisa de ninguém, a “”guerreira”” que aguenta tudo, logo eles não querem se esforçar tanto para conosco, então nunca saberemos.
Meu irmão é nove anos mais velho que eu e começou a trabalhar aos catorze. Uma geração depois, eu comecei a trabalhar aos treze para ajudar a nossa mãe.
Quando meu irmão se tornou pai, ele foi para o seu filho, o pai que ele também nunca teve. Nunca deixou lhe faltar nada, vezes até ao ponto de exagerar, e assim o ciclo foi quebrado. Meu sobrinho começou a trabalhar quando quis. E não para suprir alguma necessidade.
Essa é a grande diferença que faz na vida de alguém quando se tem duas pessoas dedicadas a cuidar da responsabilidade que ambos trouxeram ao mundo, independentemente de estarem juntas.
Há mães solo que não deixam nada faltar? Muitas. Mas a que custo para sua saúde mental, física e emocional? Culpabilizam mães solo como se fosse culpa delas a falta de caráter alheia. Como se mulheres, de forma geral, fossem responsáveis pelas atitudes dos homens.
Das mais de 11 milhões de mãe solos que existem no brasil, mais de 90% delas são mulheres negras. Isso sim deveria espantar as pessoas.
Pais pretos também abandonam. Pais pretos também saem para comprar cigarro ou pedem um tempo para ler um livro. O que deveriam debater mais é que pais pretos também adoecem com esse conceito venenoso de masculinidade, se perdem de si, são os mais encarcerados e mortos, literalmente e simbolicamente pelo rolo compressor chamado racismo.
A minha mãe adoeceu psicologicamente diante de tamanha sobrecarga e sem rede de apoio, a vida embruteceu ela. O cruzamento de racismo e sexismo forja uma vivência única e ao mesmo tempo coletiva de muito sofrimento a mulheres negras. É, no mínimo, curioso observar como alguém que teve pouco ou nenhum afeto desenvolve a capacidade de amar.
Para muitas pessoas negras, que sequer sabem nomear seus sentimentos, CUIDAR é sua única linguagem de amor. Hoje, eu sou a parceria, a segurança e o porto seguro que ela sempre sonhou em ter tido. Aos 39 anos de idade ainda não saí de casa pois sou o arrimo dela, e muito provavelmente, eu não saia.
Não ter uma figura paterna afetou meus relacionamentos? Óbvio que sim. Mas não da maneira que a maioria gosta de supôr. Como se TODA PESSOA que não teve uma figura paterna tivesse as mesmas sequelas emocionais. Buscando alguém que lhe guie, ensine, presenteie e/ou preencha alguma lacuna sentimental.
Ser uma mulher exigente não é resultado de ausência paterna...(risos)
Eu sei que o que eu exijo num companheiro é o MÍNIMO! Um adulto funcional, responsável por suas ações e maduro o suficiente para comunicar suas emoções. E até esse mínimo parece um absurdo intangível para a grande maioria dos homens héteros, que não educados para serem autônomos fisicamente e emocionalmente, principalmente no trato com uma mulher preta, que muitos nos enxergam como um cidadãs de terceira classe, objetos de satisfação de fetiche e totalmente descartáveis.
A sociedade espera que a vida das mulheres gire em torno do homem, reafirmando nossa existência através das deles. Seja pai, marido, parente ou filho.
Muitos homens não sabem ser queridos, apenas necessários. E quando uma mulher afirmar sua independência ao dizer que não precisa de um homem, ela é demonizada, masculinizada e muitas vezes preterida. Afinal, uma das características do conceito de masculinidade é a opressão do gênero oposto.
Não ter um modelo a seguir me deixou LIVRE!
Livre de culpas, expectativas e projeções.
Escrevo esse texto porque tenho certeza de que milhões de filhos e filhas por aí afora, com ou sem o nome de pai na certidão, também tiveram muito mais benefícios do que malefícios nessa “ausência”. Há muitos por aí vivendo numa angústia existencial se culpando e questionando “O que fizeram para serem abandonados?” Cheios de auto dúvidas e se sentindo insuficientes. Bom, eu não. Eu sei que nem eu, nem a minha mãe fomos responsáveis pela covardia alheia.
Do que adianta saber quem é o seu progenitor e
ter
a consciência de que todos os dias ele escolhe te rejeitar?
O ser humano não é uma massa de bolo para todos agirem e sentirem igual. Principalmente aqueles que são cruzados e interseccionados por vários pontuadores sociais. Tem gente que supera algumas coisas e tem gente que vai ter cicatrizes emocionais para o resto da vida. E-tá-tudo-bem!
Ainda em tempo, NÃO EXISTE EX-FILHO. E você não precisa se sentir mal por não conseguir perdoar quem optou por ir embora quando as coisas ficaram difíceis. Sejam mais grato por suas mães, mas sem romantizar tudo que elas teveram que encarar. Fizeram o papel delas e não do outro. Tenham mais empatia, ainda que muitas vezes seja difícil lidar com as sequelas do que a vida fez com elas.
Eu aprendi muito mais sobre vivências com as mulheres da minha família antes mesmo de ouvir falar de feminismo. Aprendi o que quero e o que preciso, o que não quero e o que jamais vou aceitar.
Por isso, e por outras, eu dou graças a Deus por não ter tido pai.
Obs: Se você leu esse texto completo e não conseguiu assimilar que a presença de um homem ao lado de uma mulher ou uma figura paterna na vida de crianças NÃO RESOLVE PROBLEMAS ESTRUTURAIS, seu problema está para além de patriarcal, é cognitivo.